Conhecendo a história

Para quem desconhece a história do Mestre Mendonça, saiba que ele tem um papel importante na capoeira como a vemos em nossa atualidade, suas ações literalmente escreveram um novo patamar do termo capoeira para a nossa sociedade e a forma como ela passou a ser vista e adotada na vida de muitas pessoas.

Damionor Ribeiro de Mendonça nasceu em Aracaju, Sergipe em 16 de julho de 1932, e veio para o Rio de Janeiro no início da década de 1950. Iniciou na capoeira na década de 1960, se tornando discípulo de Mestre Artur Emídio.

A capoeira nesta época, apesar dos esforços de diversas figuras que tentaram mudar a visão de sua prática desde o início de 1900 para um ato desportivo, como: Os artigos com ilustrações de Kalixto sobre a capoeiragem para a Revista Kosmos em 1906; Ou a publicação do livreto Guia do Capoeira ou Gymnástica Nacional assinado como “O.D.C.” em 1907; Ou a grande luta entre o campeão japonês de Jiu-Jitsu, Sado Miyako contra o brasileiro Francisco da Silva Cyríaco, mais conhecido como Cyríaco Macaco Velho em 1909; Ou o trabalho de Annibal Burlamaqui em 1928 com a publicação do Ginástica Nacional (Capoeiragem) Metodizada e Regrada; Ou as modificações de Mestre Bimba ao criar a Luta Regional Baiana, uma nova concepção para a prática da capoeira, sem usar o nome capoeira; Ou a grande sacada da Federação Carioca de Pugilismo em 1933 ao criar o Departamento de Luta Brasileira (Capoeiragem), seguido posteriormente em 1936 pela Federação Paulista de Pugilismo e em 1941 pela Confederação Brasileira de Pugilismo, com o Decreto Federal 3.199/41 assinado pelo então presidente Getulio Vargas; Ou o entusiasmo que ressurgiu na década de 1950 com o interesse de acadêmicos nacionais e estrangeiros, artistas, jornalistas e etnólogos que passam a exaltar o bairro da Liberdade na Bahia, gravam o som do berimbau em 1955 e passam a fazer pequenos documentários para demonstrar a arte capoeira no exterior; Ou a publicação do livro Capoeira Angola em 1965 por Mestre Pastinha, que no ano seguinte em 1966 comandou a comitiva brasileira que foi se apresentar no Festival Mundial de Arte Negra no Senegal.

Apesar de tudo isso, a capoeira ainda continuava sendo regida pelo Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890, que criminalizou a prática da capoeira, tornando-a uma contravenção penal.

O que faltava então para a capoeira ter um reconhecimento idôneo?

Ela precisava ser regulamentada, e para isso, precisaria do esforço comum de capoeiristas de todo o Brasil e o aval do governo sobre uma norma de aceitação de sua pratica.

O primeiro passo, mesmo que não intencionalmente para que isso ocorresse, foi realizado em 1966 por um entusiasta do folclore nacional, chamado Nóbrega Fontes, que apesar de nunca ter jogado capoeira, resolveu criar uma competição, chamado Troféu Berimbau de Prata, que ocorreu na Feira da Providencia no Rio de Janeiro. O sucesso dessa competição originou outras edições, no qual recebeu o nome de Troféu Berimbau de Ouro.

Assim, com o interesse de participação da capoeiragem de todo o Brasil em disputar esse troféu, resurgiu o interesse em debater e falar sobre a capoeira, o que originou o Primeiro Simpósio de Capoeira realizado em 1968 no Campo dos Afonso, por iniciativa da Federação Carioca de Pugilismo e apoio do Ministério da Aeronáutica, com o propósito de catalogar os golpes, as esquivas, as negaças e a nomenclatura pelo qual eram conhecidos os diversos movimentos da capoeiragem, com a participação de representantes dos estados da Guanabara, do Rio De Janeiro, de Minas Gerais, da Bahia e de São Paulo.

A coisa caminhou tão bem, que foi marcado para o ano seguinte, em 1969 um novo Simpósio de Capoeira onde eles retornariam com mais informações e a presença de mais capoeiristas para concluírem a relação com uma nomenclatura em comum tanto para as esquivas quanto para os golpes e demais movimentos da capoeiragem. E foi o que aconteceu!

Neste Segundo Simpósio de Capoeira, também foram nomeados representantes de cada estado para redigirem textos de um anteprojeto de regulamento de capoeira, para ser enviado ao Departamento de Capoeiragem da Confederação Brasileira de Pugilismo.

E aqui chegamos ao senhor Damionor Ribeiro de Mendonça, que foi escolhido como representante do Estado da Guanabara para ser o redator deste anteprojeto. Mestre Mendonça então uniu o seu conhecimento sobre a capoeira e passou a realizar diversas pesquisas entre Torneios, visitas e troca de informações com outros Mestres para elaborar o seu texto.

Esse texto deveria ser ético e responsável, não poderia sucumbir a pressões externas para valorizar esta ou aquela parte, deveria ser simples e de fácil entendimento, para que os praticantes e até mesmo os leigos da capoeira pudessem compreender, e fundamentalmente, para que os governantes vissem e aplaudissem o potencial da capoeira como luta, como desporto, e assim, a mesma fosse retirada do código penal brasileiro.

Como um bom patriota e de forma a valorizar a capoeira como genuína Arte Marcial Brasileira, Mestre Mendonça fundamentou seu anteprojeto em demonstrar nossa nacionalidade e valorizar a capoeira atual como uma arte correta, cujos praticantes são pessoas do bem, ao contrário do Decreto nº 847 que tratava os capoeiristas como vadios e criminosos.

Citarei aqui 2 pontos de extremo valor que compõe o anteprojeto:


A) GRADUAÇÃO

De forma a ter uma organização e para que os capoeiristas se entendessem e se respeitassem de forma sadia e hierárquica nas Rodas de Capoeira, Mestre Mendonça criou um sistema de graduação chamado Cordel.

O nome cordel é uma homenagem à literatura de cordel, um gênero literário de origem portuguesa onde os textos eram escritos em folhetos, pendurados em cordéis ou barbantes para exposição, esse gênero foi perpetuado no nordeste brasileiro passando a ser conhecido em todo o território nacional, onde seus autores ou cordelistas recitam seus textos/versos de forma melodiosa e cadenciada, muitas vezes acompanhados de uma viola.

As cores dessa graduação foram baseadas nas cores da Bandeira Nacional Brasileira, estabelecida de forma lógica, conforme a maior concentração ou quantidade dessa cor em nossa bandeira, sendo a primeira cor verde, depois o amarelo e o azul. A cor branca só entra no nível de mestre.

A graduação original de Cordel fundamentada pelo Mestre Mendonça tem 10 estágios, sendo eles:

1º estágio – Cordel Verde
2º estágio – Cordel Verde-Amarelo
3º estágio – Cordel Amarelo
4º estágio – Cordel Amarelo-Azul
5º estágio – Cordel Azul (Formado)
6º estágio – Cordel Verde-Amarelo-Azul (Contramestre)
7º estágio – Cordel Branco-Verde (Mestre de 1º Grau)
8º estágio – Cordel Branco-Amarelo (Mestre de 2º Grau)
9º estágio – Cordel Branco-Azul (Mestre de 3º Grau)
10º estágio – Cordel Branco (Mestre de 4º Grau)

GraduacaoCordel1972.jpg



Observações sobre a graduação:

a) Note que nesta época a prática da capoeira em sua maioria ainda era feita de forma furtiva por adolescentes e adultos, sua pratica pela sociedade era considerada coisa de vadios e não se queria esse rótulo a crianças. Desta forma, os estágios foram pensados para o início da vida adulta.

b) Independente das cores, os estágios abaixo de Mestre correspondiam a todas as etapas necessárias para o aprendizado de um aluno na compreensão da maioria dos mestres brasileiros.

c) A separação de Mestres em graus se faz, porque os mesmos se encontram em constante evolução de conhecimento, ninguém chega a mestre e se torna automaticamente o detentor de todo o conhecimento. Desta forma foram criados 4 graus, cuja mudança de graduação só ocorreria a cada 10 anos. Isso gera o respeito mútuo entre os próprios Mestres e a valorização dos mais velhos pela longa caminhada percorrida até o seu estágio.

d) Para a confecção do cordel, o material utilizado deveria ser o fio de seda, em homenagem as maltas cariocas que usavam a seda como proteção ao corte da navalha, utilizado como arma da capoeiragem no passado. Para o trançado do cordel seria utilizado 9 fios, sendo separado em 3 grupos de 3, dando referência a cabalística do três que está presente dentro da capoeira, como o uso de 3 berimbaus para compor o ritmo.

e) Um fato muito simbólico e que poucos sabem é o porque do cordel ser amarrado do lado direito do corpo. Segundo o Mestre, a adoção da regulamentação simbolizaria uma nova etapa da capoeira, onde o capoeira deixaria de ser um vadio, de acordo com o até então código penal brasileiro, e passaria a ser considerado um cidadão de bem, um cidadão “direito”!


B) UNIFORME

Mestre Mendonça em suas pesquisas, também elaborou um padrão de uniforme para a prática da capoeira, o simbolismo do uso do uniforme também atende ao preceito da mudança de paradigma entre o conceito do capoeira ser vadio, para o conceito do praticante de capoeira ser um cidadão de bem, tendo a lisura e o respeito em um uniforme limpo. Assim, a Calça deveria ser branca, em helanca ou tecido similar, cuja bainha alcance o tornozelo, atada a cintura pelo cordel indicativo da classe a que pertence o atleta. Seria proibido o uso de outra cor, bem como o uso de cintos, bolsos, fivelas e etc, que pudessem ser utilizados para esconder objetos que se tornassem armas nas mãos dos praticantes; O capoeirista vestirá camisa branca de malha, tendo estampado no peito o escudo de sua entidade; O cordel deve ser colocado na calça do capoeirista, transpondo as passadeiras, de maneira que seja dado um nó, no lado direito da cintura e que fiquem pendentes as duas pontas do cordel, na altura do joelho.

UniformeCapoeira.jpg



Observem nestes exemplos, que a preocupação ética e a valorização para que o capoeirista recebesse o respeito da sociedade para seus praticantes, sempre esteve delineado nas intenções do Mestre Mendonça, e pelo conjunto da obra, e talvez por essa percepção tão idealista do futuro da capoeira, o anteprojeto redigido pelo Mestre, foi aceito e encaminhado para o Departamento de Capoeiragem da Confederação Brasileira de Pugilismo.

Em 26 de dezembro de 1972, o anteprojeto do Mestre Mendonça foi homologado pelo Conselho Nacional de Desporto (CND-MEC) e se tornou o Regulamento Técnico da Capoeira (RTC), passando a vigorar a partir de 01 de janeiro de 1973.

Foi por causa desse homem, ético e convicto de suas ações, que a capoeiragem deixava de ser uma contravenção penal e passaria a ser reconhecida oficialmente como luta, esporte e cultura.

E assim, a partir de 1973 que a prática da capoeira foi liberada livremente para todo o território nacional, foi permitido registrar oficialmente, pelo que hoje é conhecido como CNPJ, os grupos de capoeira e também a formação de associações, ligas, federações e confederações.

Todos os grupos e associados já criados e registrados atualmente, devem há memória deste homem, a liberdade de hoje poderem abrir suas academias, receber seus alunos, realizar seus eventos, sem o medo de ser preso como vadio e fichado em registros policiais, o que muito aconteceu até o início da década de 70.

Mas com direitos, há deveres, e muita gente foge quando passa a ter uma responsabilidade, e assim, passa a criar desavenças ou fazer críticas.

Após o primeiro Campeonato Oficial de Capoeira realizado em 1974 no Estado da Guanabara, algumas divergências foram levantadas sobre o tipo de competição que estava sendo disputada, assim como o uso da graduação e uniforme, foi estabelecido que ocorresse em maio de 1975, um Congresso em Salvador cuja pauta teria graduações, uniforme e campeonato individual.

Neste Congresso de Salvador estiveram presentes delegações de vários estados, e após 3 dias de discussões, para resolver o impasse da pauta sobre graduações e uniformes, foi estabelecido que no Campeonato Brasileiro de Capoeira Individual que seria realizado neste mesmo ano de 1975 no Estado de São Paulo, a equipe que se consagrasse campeã da competição, os demais estados passariam a adotar seu uniforme e graduação como padrão nacional, acabando assim com as divergências levantadas.

Pois bem, por méritos dos atletas na competição no Campeonato Brasileiro de Capoeira de 1975 realizado em São Paulo, mas de uma forma irônica as divergências levantadas até então, a equipe que se consagrou campeã foi o Estado da Guanabara, equipe que utilizava fielmente o padrão de graduação e uniforme criado por Mestre Mendonça.

Assim, por ato regulatório homologado pelo CND-MEC em 1972 e por uma competição nacional disputada por representantes das principais federações da época em 1975, o sistema de Graduação de Cordel e Uniforme Branco, era efetivado como o padrão da Arte Marcial Brasileira Capoeira.

Respondendo a pergunta inicial: Quem foi Mestre Mendonça?

Assumiu a responsabilidade de escrever o anteprojeto do Estado da Guanabara, e o mesmo se tornou o Regulamento Técnico da Capoeira (RTC)em 26 de dezembro de 1972 que passou a vigorar em 1° de janeiro de 1973;

Por esse feito, quando o Departamento de Capoeiragem da Confederação Brasileira de Pugilismo passou a registrar oficialmente os Mestres de Capoeira, ele recebeu o registro número 0001;

Foi o inventor do primeiro berimbau feito de bambu, na época muitos o criticaram, mas na atualidade o uso do bambu é apreciado por muitos Mestres;

Também inventou o uso do dobrão de cristal;

É autor de mais de 120 músicas, incluindo as de São Bento, que são as mais cantadas em rodas;

Escreveu um livro com mais de 500 ditados populares em versos e rimas e os adaptou em musica de capoeira;

Criou cantigas de roda, músicas infantis com letras e fundamentos para a capoeira;

Recebeu da câmara Municipal do Estado do Rio de Janeiro o título de Cidadão Honorário do município do Rio de Janeiro; Medalha de Mérito Pedro Ernesto; Título de Cidadão do Estado do Rio de Janeiro; Medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio De Janeiro.

Dedicou boa parte de sua vida ao importante trabalho de estudo e aprofundamento da capoeira; A preservação da memória das raízes desta importante manifestação cultural e esportiva; Tendo ainda criado o Centro de Informação de Capoeira (CICAP).

Mestre Mendonça dizia ter tido mágoas e frustrações, em certos momentos foi perseguido e hostilizado, e chegou até a se afastar da capoeira, mas reencontrou o caminho com o respeito e a valorização dos capoeiristas que nunca deixaram de acreditar em seus ensinamentos, dos discípulos que formou e perpetuam essa história marcante no mundo da capoeira, e de seus familiares que honram o nome Mendonça e continuam atuantes na capoeira.

Quando você vir um uniforme branco de capoeira na rua, nas escolas, nas academias ou em qualquer outro lugar, saiba que ali está a marca deste homem, apesar do mundo globalizado e capitalista ter distorcido um pouco os ideais almejados por ele, a capoeira ao redor do mundo tem muito a agradecer por tudo o que ele fez!

Mestre Mendonça dizia que a palavra “IÊ” serve para tudo na capoeira. Ela é uma saudação, um cumprimento, uma manifestação de alegria, uma forma de chamar a atenção dos alunos e etc.

Iê... Viva a Memória de Mestre Mendonça


O vídeo a seguir foi uma das últimas participações do Mestre Mendonça em um evento.




Fontes de Referência:

Mestre Bogado
Apostila da Associação de Capoeira Barravento
http://www.rodadecapoeira.com.br/artigo/O-que-e-Capoeira/1
http://www.rodadecapoeira.com.br/artigo/Breve-Historia-da-Regulamentacao-da-Capoeiragem/0
http://arteevidacapoeira.blogspot.com.br/2012/11/biografia-mestre-mendonca.html

NOTA: Tomei a iniciativa de escrever esse texto por causa do meu Mestre, Evaldo Bogado de Almeida – Mestre Bogado, discípulo de Mestre Mendonça.

Por todo o respeito e admiração que ele tem por seu Mestre, e por todos os ensinamentos e informações que durante ao longo dos anos ele tem fornecido para o meu crescimento na capoeira, assim como a oportunidade que me deu de ter conhecido em vida o seu Mestre.

Esses ensinamentos serão perpetuados por mim e por meus alunos!

Salve Mestre Bogado!!

Salve a Capoeira!!!
Jefferson Estanislau