FAÇA CHUVA OU FAÇA SOL

“Faça chuva ou faça sol, estaremos aqui para receber os amigos” , disse Mestre Touro.

E assim foi feito, às 17 horas, mesmo com tempo nublado, a roda começou no toque de angola. Jogo manhoso, mandingado, bem de vagar, para não fugir da letra da música cantada por Mestre Manute, cativava a malandragem carioca nesse jogo de astúcia e atenção.

Mas o tempo parecia querer estragar a festa, e depois de 40 minutos os pingos de chuva começaram a cair, houve um início de aflição e parecia que o povo iria debandar da roda, mas o berimbau não parou de tocar e debaixo de chuva Mestre Touro em sua habitual vestimenta, calça branca e camisa amarrada na cabeça comandava e ditava as regras do jogo... “Para trás da linha vermelha, quem não estiver vendo a linha é cego ou não é capoeirista! A roda tradicional é assim, o ritmo se posiciona na cabeça e os capoeiristas ficam alinhados de pé nas laterais deixando a frente da roda livre para o mestre observar quem esta chegando. A roda de capoeira em circulo com todos sentados só foi inventada no final da década de 60 para 70, para apresentações de capoeira para turistas, pois assim, o publico poderia observar melhor o jogo que estava acontecendo.”


E assim, os capoeiristas se alinhavam sem se importar com a chuva que caia no ritmo do berimbau que subia trazendo a euforia e o calor pra dentro do jogo.

Ouvi alguém dizer: “Como é que debaixo de chuva, nesse ritmo frenético o capoeira não cai? Será que é o chão ou o pé descalço do capoeira que é antiderrapante!”


E realmente o mistério ou habilidade se fazia presente, entre meias luas, martelos cruzados e saltos, só se via o capoeira no chão quando este tomava uma rasteira. A habilidade era tanta, que teve quem aproveitou do chão molhado para deslizar e assim se esquivar de golpes que eram certeiros e levariam qualquer um para o hospital.

E a hora foi passando sem ninguém se importar com a chuva e o chão molhado, até que pontualmente as 19 horas Mestre Touro gritou Iê, para apresentar os mestres presentes e encerrar a roda, mas não antes de dar o recado. “Agora a festa vai começar, a cerveja já esta gelada e ainda tem caldo e churrasco pra se fartar, vocês vão ajeitando tudo ai que eu vou tomar um banho e já volto!”


E foi dito e feito, os alunos prepararam a mesa para os mestres mais antigos debaixo da cobertura, os copos começaram a se encher e o papo e a confraternização rolou solta, sem discriminação de graduação, grupo, sexo ou idade, pois ali somos todos amigos capoeiristas.

Quando Mestre Touro voltou, a mesa já estava farta e as brincadeiras e as lembranças rolando sem parar. Mestre Pato Roco em ritmo de funk improvisava letras, botando pilha nas brincadeiras que faziam os mestres Mestre Bogado, Mestre Silas, Mestre Mofacto, Mestre Zé, Mestre Mamute, Mestre Baianinho, Mestre Barra Mansa, Mestre Sidinho, Mestre Manute, Mestre Teo, Mestre Saci entre outros.

De tempos em tempos Mestre Silas gritava: “Boi bandido, boi bandido...” e este já sabia que era para abastecer a mesa, pois a bebida estava acabando; e assim, o povo ao redor da mesa ficava escutando tudo com atenção, ainda mais quando os mestres mais antigos falavam, pois cada história recordada se tornava uma aula cultural.

Mestre Bogado perguntou a um aluno: “Olha para sua cintura, você sabe por que amarramos o cordel do lado direito?” Como este não soube explicar, ele falou... “Damos um nó direito, do lado direito, para mostrar que o capoeira é um homem descente, uma pessoa do bem, um homem direito, pois antigamente éramos considerados vadios e presos por capoeiragem” .

Depois, ele emendou outra pergunta: “E por que chamamos o cordel de cordel?” Novamente o silêncio, e assim ele respondeu... “Deu se o nome de cordel para valorizar a cultura popular brasileira, em homenagem a nossa literatura de cordel” .

Com a atenção de todos, ele completou: “E por que usamos essas cores? Me diz aí, qual são as cores da bandeira do Brasil?” Dessa vez o aluno respondeu “verde, amarelo, azul e branco” .

“- Isso mesmo, veja que o branco é a última cor, por isso ela foi reservada para destacar apenas a graduação de mestre, e o mestre para ser mestre tem que passar por todas as cores e suas combinações até chegar seu último estágio, que é somente o branco, sendo mestre de 4º grau” .

E alguém perguntou: “Por que deram o nome de contramestre? Não fica esquisito, contra mestre, isso é, ser contra o mestre?”

Mestre Touro então rebateu: “Nós não inventamos nada, primeiro perceba que a palavra contramestre não é separada, é uma palavra única, então não há o contra ninguém aqui. Segundo, contramestre já existe a muito tempo, pois em várias atividades de trabalho você tem o ajudante do mestre que é o contramestre, por exemplo, mestre de obras, o mestre marceneiro, o mestre naval e assim por diante...”

Mestre Touro completou: “Isso que estamos fazendo aqui hoje não fui eu que inventei. Antigamente não existia academia de capoeira, pois a capoeira era perseguida e recriminada, então a capoeira era ensinada nos fundos dos quintais, e quando um mestre ia batizar um aluno, ele dizia – Meu compadre, aparece lá em casa no dia tal que a gente vai batizar um aluno e fazer uma festa. – Assim, para aquele monte de gente que estava indo na casa do mestre não chamar a atenção sobre a capoeira, no final do batizado acontecia uma festa, e se a polícia aparecesse, iria pensar que era por causa da festa, e não porque teve um batizado de capoeira” .


E assim, as horas iam passando e a cada assunto, mais uma aula sobre a cultura brasileira, mais uma aula sobre a história da capoeiragem, mais uma aula de vida desses homens que estão a tantos anos trabalhando e defendendo a capoeira para que as tradições não sejam esquecidas, mas sim, transmitidas os seus discípulos, pois alunos todos podem ter, mais somente os discípulos seguem os ensinamentos e tradições de seus mestres.


E viva o subúrbio Carioca, e viva o bairro da Penha, e viva a varanda deste homem que reúne tantos amigos, ricos de cultura e sabedoria para quem sabe chegar, respeitar e aprender!

Salve Mestre Touro!

Abraços a todos,
Jefferson Estanislau