Anderson Cavalcanti chorava abraçado ao pai. Ricardo Ribeiro sorria sem parar, o mesmo largo sorriso que ostentou durante toda a noite. Cada um à sua maneira, os dois comemoravam a classificação para o Red Bull Paranauê, evento marcado para o Farol da Barra, em Salvador, no próximo dia 28, para eleger o capoeirista mais completo do mundo. Anderson e Ricardo conquistaram as duas vagas destinadas ao Rio de Janeiro em uma seletiva realizada na noite de quinta-feira, no Clube Boqueirão. Outras seletivas em São Paulo e Salvador, além de uma que já foi realizada em Barcelona, na Espanha, selecionarão outros 14 competidores.

Com uma origem que remonta o século XVII, em Angola, a capoeira chegou ao Brasil com os escravos africanos e rapidamente se espalhou como uma importante manifestação cultural, englobando dança, música e esporte, com um passado de luta marcial especialmente como defesa pessoal.

— A capoeira é um esporte, sim. É uma arte que engloba várias artes. É ate cruel definir a capoeira. É um símbolo de resistência cultural, que tem um importante papel de divulgação da cultura brasileira mundo afora — diz Jair Oliveira Júnior, o Mestre Sabiá, baiano de 45 anos e curador do evento.

Marcada pela cumplicidade entre os dois praticantes, a capoeira não é um esporte marcado pela competitividade. Eventos como o RB Paranauê não são comuns, e houve a preocupação de usar o termo ‘mais completo’ no lugar de ‘melhor’ capoeirista do mundo. Também havia o temor de críticas de setores mais conservadores.

— O capoeirista é um desconfiado por natureza, mas o evento tem toda uma preocupação com o legado cultural. Os finalistas terão aulas com os mestres, estudarão os toques, os estilos. Todos serão vencedores. E conseguimos fazer as pessoas mais radicais da capoeira sentirem que estão contribuindo para o evento — disse Sabiá.

Alternando toques mais cadenciados e acelerados, o evento foi um festival de gingado, rasteiras e mortais. Golpes no ar e esquivas para todos os lados. Camaradagem e muitos abraços entre todos os competidores.

— A capoeira é um jogo. Tem competição, mas tem também a cumplicidade. Você joga com o outro, e não contra o outro. Uma rasteira faz parte, mas não pode perder o sorriso — analisa Sabiá.

Com uma vasta cabeleira black power, que lhe rende frequentemente comparações com Dante ou William Barbio (‘Essa eu reclamo, o Barbio é muito feio!’), Fábio Gonçalves fazia coro às palavras de Sabiá.

— Tem a malícia, tem o lado da luta, mas não é uma luta direta. Você não golpeia o adversário. A galera na maioria das vezes vibra mais com a esquiva do que com um golpe.

Alguns dos confrontos da seletiva esquentaram um pouco, com cabeçadas e chutes acertando o adversário com talvez um pouco mais de força que o recomendado.

Um dos jurados do evento, Paulo César Souza, o Mestre Paulinho Sabiá, de Niterói, recordou que Mestre Bimba, o maior nome da capoeira nacional, ganhava a vida com lutas e desafios, e morreu invicto.

— Desde aquela época a capoeira mostrava seu potencial como luta. Muitas vezes eu vejo um golpe de capoeira definindo uma luta no UFC.


CAPOEIRA PEDE MAIS RESPEITO

Praticante de capoeira de Angola, estilo mais lento e cadenciado, bastante ligado às raízes do esporte, Ricardo Ribeiro foi calmamente, como seu jogo, avançando pelas fases até ser escolhido entre os dois competidores que vão à final mundial em Salvador. Ele revelou que chegou a pensar em não competir na seletiva do RB Paranauê.

— Eu nunca tinha participado de um evento assim. Alguns mestres até não gostaram muito de eu ter vindo. Para mim a capoeira é uma filosofia de vida, mas acho válido quem quer ir para o lado esportivo — diz o morador de Duque de Caxias, de 36 anos.

O outro escolhido, Anderson Cavalcanti, de 22 anos, morador da Ilha do Governador, dá aulas de capoeira em uma ONG no bairro do Riachuelo.

— A capoeira representa muita coisa, é tudo para mim. Ela já levou a muitos lugares da Europa, como Rússia, Suécia e França, para dar aulas e fazer shows.

Com cerca de seis milhões de praticantes no Brasil, a capoeira, perseguida e proibida no começo do século passado, ganhou as escolas e o mundo. Foi considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco.

Mas quem vive do esporte, como Mestre Sabiá, diz que ainda há um longo caminho a ser percorrido.

— A capoeira é mais reconhecida lá fora do que no Brasil. Aqui ainda é tratada como coisa de pobre, de preto. Este evento fica de exemplo. É preciso tratar a capoeira com respeito.


Por: Renato de Alexandrino